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PARLAMENTARISMO, UMA SOMBRA NO HORIZONTE

O debate sobre o parlamentarismo, volta e meia, entra na pauta das Casas Congressuais. Tramita no Congresso um projeto que propõe um plebiscito em 2026 para a restauração do parlamentarismo no Brasil.Um pouco de história: já contamos por duas experiências parlamentares. A primeira, no Império (1847-1889), quando o sistema político era conhecido como parlamentarismo às avessas. O imperador escolheu o primeiro-ministro, que era o responsável pela gestão do governo.A segunda, após a renúncia de Jânio Quadros (1961-1963). A renúncia gerou uma crise política e o parlamentarismo foi adotado para resolver o ime. O primeiro-ministro era Tancredo Neves. Ao assumir a presidência, João Goulart não conseguiu implementar a mudança e o sistema presidencialista foi restabelecido por plebiscito.Em 1993, foi feito um plebiscito para decidir a forma de governo (república ou monarquia) e o sistema de governo (presidencialista ou parlamentarista). Mais uma vez, a população decidiu, através do voto, manter a república e o sistema presidencialista.Hoje, Hugo Motta, presidente da Câmara, ite a possibilidade de se fazer outro plebiscito para verificar se a população aceita adotar o parlamentarismo como sistema de governo.Expliquemos. O parlamentarismo é um sistema de governo em que o chefe do governo é o primeiro-ministro, escolhido pelo Parlamento, em vez de ser eleito diretamente pelo povo. O primeiro-ministro e o gabinete são responsáveis presidente do Parlamento, que podem destituí-los por meio de um movimento de censura.Por que a maioria da população tem rejeitado o parlamentarismo, que apresenta vantagens, como maior flexibilidade na gestão política, continuidade de políticas públicas, possibilidade de rápida renovação do governo em crise, maior responsabilidade dos ministros perante o povo, integração entre Legislativo e Executivo, menos corrupção e maior facilidade na aprovação de leis?A resposta aponta para o índole do nosso povo. A semente presidencialista, como se sabe, viceja em todos os espaços, dos mais simples e modestos aos mais elevados. O termo presidente faz ecoar significados de grandeza, forma associação com a aura do Todo-Poderoso, com as vestes do monarca, com a caneta do homem que tem influência, poder de mandar e desmandar. Até no futebol o presidente é o mandachuva. O chiste é conhecido: como o ato mais importante da partida de futebol, o pênalti deveria ser cobrado pelo presidente.Em 1980, na final do Campeonato Brasileiro, o Flamengo vencia por 3 a 2 o Atlético Mineiro, em polêmica partida disputada no Maracanã. O julgado expulsou três jogadores do Atlético, a bagunça tomou o campo e agitou os nervos. No fim, transformado com o “resultado roubado”, Elias Kalil, presidente do Atlético, exclamou aos berros: “Vou apelar para o presidente da República, João Figueiredo! Vou falar pra ele de presidente para presidente.”O culto à figura do presidente e, por extensão, outros atores com forte poder de mando fazem parte da glorificação em torno do Poder Executivo. Herança do patrimonialismo ibérico. Herdamos da monarquia portuguesa os ritos da Corte: iração, bajulação, respeito e medidas, incluindo o beija-mão.O sociólogo francês Maurice Duverger defende a tese de que o gosto latino-americano pelo sistema presidencialista tem que ver com o aparato monárquico na região. O vasto e milenar Império Inca, com seus grandes caciques, e depois o poder espanhol, com seus reis, vice-reis, conquistadores, aventureiros e corregedores, plasmaram a proteção por regimes de caráter autocrático.O presidencialismo por essas placas agregaria, assim, uma boa dose de autocracia. Já o parlamentarismo que vicejou na Europa teria sido inspirado na ideologia liberal da Revolução sa, cujo alvo foi derrubado pelo soberano. Isso explicaria a distância da Europa antes do modelo presidencialista. A disposição monocrática de exercício do poder vem, no Brasil, desde 1824, quando a Constituição atribuiu a chefia do Executivo ao imperador. A adoção do presidencialismo, na Carta de 1891 – que absorveu os princípios da Carta americana de 1787 –, só foi interrompida no interregno de 1961 a 1963, quando o País ou pela experiência parlamentar do governo Goulart.Portanto, o presidencialismo está fincado no altar mais alto da cultura política. O poder que dele emana impregna a figura do mandatário, elevado à condição de pai da Pátria, protetor, benemérito. A imagem do Estado e a imagem do governante imbricam-se. Sob essa configuração, imagine que o parlamentarismo tenha chance por aqui é apostar que a fada madrinha decidiu deixar o reino da fantasia para nos visitar. Temos de conviver mesmo com o fardão presidencialista.E continue com o nosso presidencialismo de coalizão. Que, na corda bamba, usa um sistema de trocas com uma política base para ganhar estabilidade. |
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político |